O Sheik desce a cimitarra nas tirinhas
Hoje o Sheik levantará sua cimitarra erguida, enorme, afiada e flamejante contra um assunto querido aos Franj: as tirinhas dos jornais.
Dizem as sábias palavras do Mulá Al-Fahzema, O Excessivamente Perfumado, que quem começa a leitura dos jornais pelas tirinhas vive por cem anos. Na verdade o Mulá Al-Fahzema copiou esta máxima da pesquisa de uma universidade Franj, mas a verdade dos enviados do Profeta é melhor do que qualquer pesquisa, ainda que plagiada. As tiras da Folha de São Paulo estão em primeiro lugar porque o Sheik costuma ler este sórdido pasquim descrente e imperialista enquanto perfaz suas primeiras obrigações matinais, sentado no trono dos eleitos e de costas para Meca. Mas o Sheik acrescentou algumas outras tiras de outros órgãos da imprensa marrom incréu, imperialista e infiel que ele também costuma ler quando está em outros lugares, para não concentrar todos os golpes de cimitarra num ponto só. E agora, como dizia o carrasco saudita, vamos pedacinho por pedacinho e tira por tira:
Chiclete com Banana - Angeli
Houve um tempo - mas para Allah só existe a eternidade - que Los Tres Amigos reinavam sozinhos nos cartuns brasileiros. Angeli, Glauco e Laerte: os três eram ótimos separados e muito bons juntos. Cada qual tinha seu traço e suas influências, mas na verdade Angeli era o mais engraçado dos três. E por um tempo criou personagens tão bons que o Sheik orava pelo menos duas vezes por dia voltado para Meca para que um deles se tornasse eterno, ou os três se reunissem para criar "Os Três Emires". Se fosse nos bons tempos, o Sheik até deixava passar uma blasfêmia ou duas.
Mas como cartunista o Angeli envelheceu, e os personagens idem. A Rê Bordosa morreu na hora certa, o Bob Cuspe deve ser hoje gerente de uma videolocadora, o Rallah Ricota bispo de igreja crente, a Mara Tara uma das fiéis dele. Mas nas tiras todos continuam de uma eternidade teimosa. E os novos personagens simplesmente não têm a mesma graça dos antigos. E no contraponto, tome Mondo Pinguino, República dos Bananas, capas imaginárias de discos (antigo, não?) e às vezes uma das velhas tiras, só que sem a graça.
Angeli: seu traço é muito bom. Você sabe disso, sua mulher sabe disso, seu cachorro sabe disso, sua tia Concetta sabe e nós também. Mas lugar de traço bom é na galeria de arte, cartum tem que ter traço e graça. Tire umas longas férias, embarque numa viagem de ácido se o seu geriatra deixar, tome um bom porre de uísque paraguaio e vá desenhar de ressaca. Lembre-se dos bons conselhos dos malditos infiéis Auberon Waugh e sua versão brasileira Cinecastro, Paulo Francis: depois dos 45 humor tem que ter uma certa dose de mal-de-próstata, ou se perde a graça.
Ou um conselho alternativo: dê o seu lugar nas tiras a outro ou publique um revival. E continue nas charges, porque como chargista você está melhor a cada dia (menos naqueles em que o espírito das tiras se infiltra nas charges). E foi pelas charges que o Sheik se inspirou na generosidade do Profeta e deu só duas bombinhas.
JJ - Short Cuts e Os Pescoçudos- Caco Galhardo
"Os pescoçudos" começou mal, bem avant garde - e como diz o Micalba nada menos avant garde do que avant garde. Mas tudo melhorou bastante: o traço, os personagens, as gags. A Miriam Poodle já está deixando saudades, o Chico Bacon é muito bom, os Conjugal Fighters andam meio sumidos mas são ótimos. De vez em quando se nota um tropeço e uma volta às origens, mas como disse o Mulá Al Denthe, às vezes falta inspiração para tudo, até para novos aforismos árabes. Mais um tempo e ele ganha mais um oásis.
JJJ - Aline & Rocky e Hudson - Adão Iturrusgarai
Tive que afugentar o alter-ego o Micalba com a cimitarra antes de escrever esta, porque os propalados 25% de sangue francês dele são na verdade sangue basco e isso podia acabar influenciando o meu julgamento. Além do mais, nem muçulmano gosta de cutucar basco com vara curta - mesmo que seja só 25%. Mas concordo com ele: o Iturrusgarai (só outro basco para me ensinar como se escreve isso) tem boas gags, um traço peculiar mas constante (pena que a Aline não seja mais sexy e a bunda do Rocky e Hudson deixem a desejar para os apreciadores). Mas o sorriso nosso de cada dia está garantido, e os três oásis também. Quando as curvas da Aline aparecerem mais oásis podem se materializar no horizonte.
- Piratas do Tietê - Laerte
Um dia alguém disse ao Laerte que ele tinha o melhor traço do Brasil e que era o mestre dos mestres, e ele acreditou. Pouco depois um dos seus personagens mais fracos e ridículos - o Homem-Catraca - virou tema de redação de vestibular. Aí ele teve certeza e ficou impossível.
Laerte: Allah, Maomé, Cristo, Buda e o Ali da loja da esquina reconhecem a humildade como uma virtude, e nas imortais palavras do Mulá Clint Eastwood no avatar de Dirty Harry, o homem precisa conhecer suas limitações.
Uma lição em imortalidade (e só Allah conhece mais do assunto): em 2005 Maggie Broon foi escolhida a mulher mais sexy da Escócia. Maggie Broon é uma personagem do The Broons, uma tira escocesa publicada desde 1936. Blondie (Belinda) é de 1930, e continua sendo publicada. Imortalidade é mais ou menos assim.
Posto em perspectiva, o traço do Laerte é tão bom como o dos Caruso Bros. - eu nunca sei qual é qual. Pelo menos eles tentam ser engraçados (try, try again) e um deles - acho que o Paulo - faz ou fazia uma jam session bem razoável no Bar Piratininga, na Vila Madalena. O Sheik ia sem o kaffieh para disfarçar, e pedia ao Passarinho um Dry Martini com Noilly Prat e Bombay Saphire.
Outro dia o Laerte pediu para "emular o Millor". Sacrilégio! O traço do Millor é discutível mas a combinação de cores dele é fantástica. E o texto dele é excepcional, especialmente para um cara que ainda traz na careca traços de cocô de pterodátilo seco . O Millor é um ícone de verdade, e o Laerte um aspirante muuuuito pretensioso.
Seja como for, de repente o Laerte perdeu inteiramente a graça e tome tiras que deviam ser publicadas na revista da seita Universo em Desencanto ou no Jornal da Associação Psicanalítica Brasileira. O homem anda tão engraçado quanto uma comédia de Brecht ou uma das piadas citadas por Freud em "O Chiste e sua Relação com o Inconsciente". Haja saco.
O traço continua bom (mas lugar de traço solitário é na galeria de arte), mas apesar dele colaborar com quase todos os cadernos da "Folha", a graça vai lentamente sumindo de todos eles: já desapareceu das tiras faz muito tempo, do "Suriá" do caderno infantil, recentemente evaporou da parte de televisão da Ilustrada de domingo, e daqui a pouco some do último refúgio - o caderno de Informática.
O mais depressivo é que um dia ele já foi bom - muito bom.
Última lição do Sheik:
Laerte: Hoje você é como uma tempestade de areia no deserto. Vista à distância, um espetáculo magnífico. De perto, só entra areia no seu olho.
JJJJJ - Níquel Náusea - Fernando Gonsales
O Profeta disse uma vez - e mesmo que seja o dos Franj Maomé está disputando o copyright - que os humildes herdarão a Terra. O Gonsales é um desses. A risada nunca falha, e o traço é tosco mas nunca deixa de dar o recado. E é melhor achar inspiração em um bicho por dia - infinitas são as criaturas de Allah - do que inventar moda.
JJJJ - Radicci – Iotti
O Sheik sente uma simpatia especial pelos gaúchos, especialmente depois que descobriu que bombacha pode ter sido herdada dos zuavos. O Radicci tem tudo o que o Sheik gosta: é politicamente incorreto, grosso, bárbaro e selvagem, e caçador como o Micalba. O traço é ótimo, ainda que nem todos possam ver de cara (alguns vão ter que comprar "O Livro Negro do Radicci" para perceber isso). O único senão é que o texto é meio regionalista, e por isso falta o último oásis. Mas gaúchos e muçulmanos são casos à parte, e você tem que conhecer um antes de gostar.